terça-feira, 24 de março de 2015

Em Rostock alguém escuta essa música enquanto finge não sentir frio. A cidade que dorme cedo. Qualquer hora é madrugada na solidão das ruas molhados
Nenhuma lucidez, nenhum clarão, nenhum lampejo?
Coleção de guardanapos e talheres desencontrados.
Viajávamos de avião e as lembranças eram como relíquias. Os pequeninos potinhos de geleia como bibelôs – como se geleia pra criança ou pra boneca.
Você fazia suas fotos. Você balbuciava por detrás da lente. Seu mau humor sempre iminente. Pedras, mar, montanha. Os assuntos se perdem.
Essa camisa foi você quem escolheu. Joguei fora tanta coisa. Sobraram poucos dedos, dentes. Rasguei a pele do que nos cobria.
Eu, no retrato. Sorrio, mas sei que aquele tinha sido um dia ruim.
Narrei meus passos em Munique e não foi suficiente, nem as frutas que molhavam debaixo da chuva, ao alcance de qualquer um. Ali, naquela mesma esquina, perdi um anel que nunca mais achei. Eu me perdia diuturnamente. Às vezes, quase ia parar na Áustria, às vezes, no dezembro encharcado de Tupaciguara.
No dia do enterro também chovia. Lacra-se com cimento o medo de qualquer levante, qualquer insurgência. Meu coração como aquele que fizemos de rosas brancas sobre o túmulo.
Escolhi o nome de um filho que nunca vou ter. Joguei coisas ao rio, ao mar, frutas secas e um pedido. Já são meses até aqui. (Passo a mão secretamente por debaixo da mesa, arriscando a presença de ferpas).

Estou murcha como um saco de ilusão.
Em Rostock alguém escuta essa música enquanto finge não sentir frio. A cidade que dorme cedo. Qualquer hora é madrugada na solidão das ruas molhados
Nenhuma lucidez, nenhum clarão, nenhum lampejo?
Coleção de guardanapos e talheres desencontrados.
Viajávamos de avião e as lembranças eram como relíquias. Os pequeninos potinhos de geleia como bibelôs – como se geleia pra criança ou pra boneca.
Você fazia suas fotos. Você balbuciava por detrás da lente. Seu mau humor sempre iminente. Pedras, mar, montanha. Os assuntos se perdem.
Essa camisa foi você quem escolheu. Joguei fora tanta coisa. Sobraram poucos dedos, dentes. Rasguei a pele do que nos cobria.
Eu, no retrato. Sorrio, mas sei que aquele tinha sido um dia ruim.
Narrei meus passos em Munique e não foi suficiente, nem as frutas que molhavam debaixo da chuva, ao alcance de qualquer um. Ali, naquela mesma esquina, perdi um anel que nunca mais achei. Eu me perdia diuturnamente. Às vezes, quase ia parar na Áustria, às vezes, no dezembro encharcado de Tupaciguara.
No dia do enterro também chovia. Lacra-se com cimento o medo de qualquer levante, qualquer insurgência. Meu coração como aquele que fizemos de rosas brancas sobre o túmulo.
Escolhi o nome de um filho que nunca vou ter. Joguei coisas ao rio, ao mar, frutas secas e um pedido. Já são meses até aqui. (Passo a mão secretamente por debaixo da mesa, arriscando a presença de ferpas).

Estou murcha como um saco de ilusão.
Estaria casada agora se você tivesse deixado
De manhã faria nossos pães
Mas você ficou brincando de não aceitar o amor
Achou bonito, não sei
Estaria separando roupas claras das escuras e os bons grãos dos ruins
Mas você se debruça como a cerejeira, você, tão século XIX
Sobrou só o pano daquilo que te cobria no desenho
Você não deixou
Cobrou o pedágio, as taxas, corveia, banalidades
Na hora das mãos espalmadas, só grito e espuma
Na hora de aquecer os pés defronte à TV, sobrou o cheiro incessante do cloro, corrosivo alvejante das sensações
Sobrou a falta
Restaram as fatias frias do tomate – com as sementes incrustadas, daquele jeito de que você não gosta e que agora faço questão de comer
Sorvo tudo que você detesta, como ostra embebida em suco de limão
Disseram, não morda, não mastigue
E o que escorrega pra dentro finge deslizar ao custo do veículo que lhe faz arder a dor

                                                                                                              (27/01/2015)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Você encharca a cama. Você encharca a cama toda. Outrora, desejo. Agora, os óleos frios da madrugada. O ranço tentando sair pra fora. Uma nuvem paira sobre a cabeça e sublima em sal com gosto de lágrima. Eu lamberia você, fosse necessário, pra tirar o que se materializa de dentro pra fora. De noite, sou testemunha insone de tantos fantasmas. Fecho os olhos pra poder ver no escuro. Sua dor, contígua, faz-me pouca coisa de anjo. Se penetrasse em poros, transfundindo a febre, se pudesse me realocar em você, bebendo a doença, ainda que sobrasse de você a pele oca da cobra. A alma é água e fumaça.
Eu era a própria curva do rio, ia descendo como uma chalana. Não tinha teto, não tinha terra. Voava por cima d´água, vapor refrescando o cabelo enrolado. Dia sim, dia não, peixes se cumprimentavam pela água escura. Mangue. Sorte. Premonição. Tudo mergulha em si e dentro de mim como memórias postas. Meu coração, encharcado, se cerca de céu, de vento, tentando sacudir a coisa toda de dentro. Na chuva, une-se tudo, de cima e de baixo, sem que o próprio barquinho pudesse representar qualquer horizonte. Frívola cauda de baleia. Cartilagem pra roer até o fim. Gosto do sem-gosto. Sal é ouro. Faço minhas as palavras do sol, tempo nenhum há, há um pequeno filme, feito de fotografias de histórias em movimento na cabeça. Que cabeça?
Subia as ruas escuras madrugada adentro com medo. A cidade pacata, guardando o sono dos habitantes, refletia a luz da lua no calçamento de pedras pontiagudas. Tudo seria aconchegante se estivesse deitada, que fosse em um colchão de palha, a mirar o teto de telhas de barro. Mas, agora, depois de tudo, sentiria medo em qualquer rua, em qualquer lugar. Um velho bêbado apontou um pouco antes, “ali pra cima da rua dos prazeres”. Aquilo soou irônico. Ela era a própria ironia. De dia, seria percebida. Agora, só os gatos fazem alguma mesura.
O pé de mamão poderia ser um cipreste de cemitério, tão absorvido pela noite negra. Tudo trazia a nota de algo fúnebre. Ela, sua cabeça pesada. Relances, fatos, memórias, filme. Tudo tremia como um graveto. Tudo confundia como a água pisada. Medo. Medo e passos. Ali, era uma casa onde se forjava ouro. Os buracos na altura da rua davam para calabouços, porões onde se depositavam gente e excretas. De noite, como se fosse esta mesma noite, todos os cheiros traziam o ar para baixo.

O salto se intimidava pelas calçadas. Um para-peito fingia a presença de alguma pessoa. A sacada mesma parecia espiar. Noite do sem-fim, caminho nenhum. Sentou ali mesmo em uma sarjeta – meio-fio, como dizem por ali. Na testa, o cabelo de festa grudado. Na cabeça, memória de festa nenhuma. De repente, luz tímida; nascia o dia. Rosa, fúcsia, negro véu que agora se invertia em azulado.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os dedos, o cabelo, a jaqueta – tudo embebe a lembrança do almoço de antes. Um kebab delicioso, embora lhe faltasse, pelas minhas restrições enzimáticas, um tal iogurte turco, pra lhe melhorar ainda mais o paladar. Tudo para ser comido em grande estilo sentada num banco de concreto em frente ao também amarelo anexo do museu Lehnbachhaus, não fosse a disputa incessante com um impertinente pombo às voltas do meu momento. O colega latino ao lado, se arriscando na lição de alemão, finge qualquer espanto diante dos meus espasmos. Do outro lado, a criança branca investia medrosa as várias migalhas da casquinha de sorvete em direção ao famigerado pássaro, incrementando o episódio terrivelmente longo.

Vencida, ainda mastigando, catei a garrafa com o resto do suco de maçã e bati, decidida, em retirada. O passo duro, a cara empinada, talvez toda a postura passasse uma ideia de pessoa bem localizada na capital da Baviera, de modo que uma senhora, a despeito do meu status de turista, se aproximasse e me pedisse orientação. Era seu o meu objetivo, visitar a Pinakothek der Moderne, mas sua localização exata eu secretamente ignorava. Ainda sim, dei qualquer apontamento e rompemos, cada uma em seu próprio zigue-zague, marcando uma distância segura, em direção ao museu onde, minutos depois, ela, descendo a escada para o guarda-volumes, e eu, ascendendo para encontrar o All Star amarelo de Andy Warhol, nos sorrimos docemente.