sexta-feira, 31 de janeiro de 2014


Ele pirou.
Ele pirou. (diria um narrador de maneira eloquente)
Uma escolha errada na vida. Um sufocamento pelo orgulho e outro orgulho de não poder voltar atrás. Coisa de homem. Coisa de honra. Honra é coisa de  homem.
Não podia ser dele, não podia.
Com a Eulália, foi só uma vez. Uma meia vez, porque ela era virgem. Dizia que era.
Depois, a estória de que o Fúlvio tava pegando ela também. Aliás, no mesmo dia que eu. Assim disseram. Uma vagabunda, só poderia pensar. Justo ela, tão virgem, tão branquinha, tão bicho-pra-ir-curtindo-na-pouca-rédea-de-moça-que-era-pra-casar. Tão linda. Usava um anelzinho no dedo médio – presente de quinze anos. As tardes de domingo eu passava com ela. Sorvete. Passeio na praça – ela fazia pequenos buquês com os pendúnculos das flores. Eu amava ela. Na verdade, eu amava. Dizia que ia casar.
As sextas eram pra gastar com as primas. A Eulália era pra casar. Eu pensava que tinha que preservar. Coisa de homem.
E aí, a notícia. Ela grávida. Ela veio me contar na saída do trabalho, ainda com a roupa da escola. Ela esperou tudo de mim. Ela acho que eu ia acreditar, apoiar, adiantar o plano do casório, sei lá. Ela nem parecia tão triste ou tão desesperada. Eu, atônito, encostado no muro de chapisco. Ela falou, falou. Espalmava as mãos. Cabelo preso pra trás. Eu falei qualquer coisa pra dentro, quase “licença”, peguei a moto, dei partida e fui embora. Fui embora mesmo, não pra casa, pra república onde morava, nem pra casa de ninguém, fui embora. Até a próxima cidade e a próxima e a próxima. Passei a trabalhar numa mecânica, depois numa mercearia, depois num açougue.
A menina nasceu com um probleminha, fiquei sabendo. Não podia mesmo ser minha. Da Eulália, pouco fiquei sabendo. Foi mandada embora da casa dos pais, foi parar na casa de uma tia no norte do Estado, foi trabalhar de doméstica, foi merendeira. Ela queria fazer contabilidade. Queria trabalhar no banco. Achava chique ser bancária.
Não tinha essas coisas de DNA. Não tinha.
Hoje, a prova da compatibilidade cromossômica não paga o tempo perdido, não apaga a culpa. Mais de 20 anos se passaram. Uma estrada que se ilumina apenas pra trás, assim é a experiência, como dizem.
A menina precisa de cuidados. A Eulália já se foi. Os avós, ainda que tão frios, não estão mais por aqui. A tia, já era velha naquela época.
A única coisa que me salva é a inocência que seu intelecto infantil deixou intacta. Minha eterna criança.
E, hoje, somos só eu, ela, a estrada e o tempo que ainda nos resta.
Eu desisto
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
E uma gente que não viva só pra si

Em algum lugar escondido por pedras que não indicam um caminho é 1988. Usa-se uma camisa polo lilás que alguém esqueceu em casa e ela passou a fazer parte dum acervo comumente povoado de camisetas de campanha política ou campanha salarial ou qualquer luta. De punhos rentes, fazia com que os braços tivessem bíceps fortes. Eu gostava de me perder de admirar.
Ao que se discutia alto, porque se discutia tanto e ao mesmo tempo na mesa de lata enferrujada, ainda que cervejas geladas em copos Nair untassem a fala, pigarreava-se, um pouco do frio, um pouco do tanto dizer, o que poderia ser rebatido com um caldo de mocotó em outro lugar, onde alguém recomendasse que se desse a saideira.
Cruzavam-se os braços com o dedão debaixo das axilas, o que, de novo, colocava a camisa e o apresentar-se dentro dela como uma coisa bonita de se ver, tão apropriado parecia.

Eu, secretamente, aguardava o dia em que, novamente, após o talco Banho a Banho, a cabeça descabelada se enfiasse por dentro da gola da camisa polo lilás e o herói se compusesse, abotoando-lhe até o pescoço, em pomo rente, pelas aparências que ela fazia emergir e justificava.