sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Você encharca a cama. Você encharca a cama toda. Outrora, desejo. Agora, os óleos frios da madrugada. O ranço tentando sair pra fora. Uma nuvem paira sobre a cabeça e sublima em sal com gosto de lágrima. Eu lamberia você, fosse necessário, pra tirar o que se materializa de dentro pra fora. De noite, sou testemunha insone de tantos fantasmas. Fecho os olhos pra poder ver no escuro. Sua dor, contígua, faz-me pouca coisa de anjo. Se penetrasse em poros, transfundindo a febre, se pudesse me realocar em você, bebendo a doença, ainda que sobrasse de você a pele oca da cobra. A alma é água e fumaça.
Eu era a própria curva do rio, ia descendo como uma chalana. Não tinha teto, não tinha terra. Voava por cima d´água, vapor refrescando o cabelo enrolado. Dia sim, dia não, peixes se cumprimentavam pela água escura. Mangue. Sorte. Premonição. Tudo mergulha em si e dentro de mim como memórias postas. Meu coração, encharcado, se cerca de céu, de vento, tentando sacudir a coisa toda de dentro. Na chuva, une-se tudo, de cima e de baixo, sem que o próprio barquinho pudesse representar qualquer horizonte. Frívola cauda de baleia. Cartilagem pra roer até o fim. Gosto do sem-gosto. Sal é ouro. Faço minhas as palavras do sol, tempo nenhum há, há um pequeno filme, feito de fotografias de histórias em movimento na cabeça. Que cabeça?
Subia as ruas escuras madrugada adentro com medo. A cidade pacata, guardando o sono dos habitantes, refletia a luz da lua no calçamento de pedras pontiagudas. Tudo seria aconchegante se estivesse deitada, que fosse em um colchão de palha, a mirar o teto de telhas de barro. Mas, agora, depois de tudo, sentiria medo em qualquer rua, em qualquer lugar. Um velho bêbado apontou um pouco antes, “ali pra cima da rua dos prazeres”. Aquilo soou irônico. Ela era a própria ironia. De dia, seria percebida. Agora, só os gatos fazem alguma mesura.
O pé de mamão poderia ser um cipreste de cemitério, tão absorvido pela noite negra. Tudo trazia a nota de algo fúnebre. Ela, sua cabeça pesada. Relances, fatos, memórias, filme. Tudo tremia como um graveto. Tudo confundia como a água pisada. Medo. Medo e passos. Ali, era uma casa onde se forjava ouro. Os buracos na altura da rua davam para calabouços, porões onde se depositavam gente e excretas. De noite, como se fosse esta mesma noite, todos os cheiros traziam o ar para baixo.

O salto se intimidava pelas calçadas. Um para-peito fingia a presença de alguma pessoa. A sacada mesma parecia espiar. Noite do sem-fim, caminho nenhum. Sentou ali mesmo em uma sarjeta – meio-fio, como dizem por ali. Na testa, o cabelo de festa grudado. Na cabeça, memória de festa nenhuma. De repente, luz tímida; nascia o dia. Rosa, fúcsia, negro véu que agora se invertia em azulado.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os dedos, o cabelo, a jaqueta – tudo embebe a lembrança do almoço de antes. Um kebab delicioso, embora lhe faltasse, pelas minhas restrições enzimáticas, um tal iogurte turco, pra lhe melhorar ainda mais o paladar. Tudo para ser comido em grande estilo sentada num banco de concreto em frente ao também amarelo anexo do museu Lehnbachhaus, não fosse a disputa incessante com um impertinente pombo às voltas do meu momento. O colega latino ao lado, se arriscando na lição de alemão, finge qualquer espanto diante dos meus espasmos. Do outro lado, a criança branca investia medrosa as várias migalhas da casquinha de sorvete em direção ao famigerado pássaro, incrementando o episódio terrivelmente longo.

Vencida, ainda mastigando, catei a garrafa com o resto do suco de maçã e bati, decidida, em retirada. O passo duro, a cara empinada, talvez toda a postura passasse uma ideia de pessoa bem localizada na capital da Baviera, de modo que uma senhora, a despeito do meu status de turista, se aproximasse e me pedisse orientação. Era seu o meu objetivo, visitar a Pinakothek der Moderne, mas sua localização exata eu secretamente ignorava. Ainda sim, dei qualquer apontamento e rompemos, cada uma em seu próprio zigue-zague, marcando uma distância segura, em direção ao museu onde, minutos depois, ela, descendo a escada para o guarda-volumes, e eu, ascendendo para encontrar o All Star amarelo de Andy Warhol, nos sorrimos docemente.
Cruzeiro é uma cidade muito mais interiorana e menor do que eu havia imaginado. Muito mais. Menos. Ruas entrecortadas em desenhos geométricos improváveis para a expectativa estrangeira. Ruas de pedras pontiagudas. Quebra-molas. Rupturas. Pequena o suficiente para que o diálogo aconteça entre duas bicicletas no meio da rua a despeito dos carros.
Uma cidade fora do tempo e do espaço, escondida por entre montanhas, incrustada, encravada, protegida por braços de um imenso gigante de todos os lados, construída para o meu devaneio-ficção.
Grita-se ou o silêncio registra ainda o romper da copa do dente de leão.
O chá cura melancolia e as dores de barriga. Nos quintais, cimento e a tinta das amoras, registro de outrora.
Em uma rua, seguem-se casas em corrente, um muro em comunhão, uma barricada contra a sorte, a solidão.
De manhã, são quase sete horas, as pessoas enfileiradas ignoram o orvalho e o cheiro do café coado que também sua os azulejos.
Na cidade envolta pelos braços de pedra, todos querem voltar pros braços de uma avó que cuidou de vinte netos.

Ninguém sai de Cruzeiro. Cruzeiro não sai de ninguém.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

É dificil demais ser feliz sendo triste. As coisas não são substitutivas, um dente-de-leão ao vento, um pó de água de cachoeira, não é um pino que se coloca no lugar de outro. Há sobreposições. Glacê cobrindo estrume. Calda de caramelo tentando penetrar em pedra impenetrável. Cascas que permanecem em equilíbrio frágil até que um movimento mais brusco lhes faz brotar o sangue provisoriamente estancado. No banho quente de lembranças evaporantes, até a mais dura das crostas se amolece em espumas frágeis.

Envelhecer faz endurecer as juntas e o coração? Ou é arriscado demais esperar pra acabar sendo um velho lacrimejante pra disfarçar qualquer desilusão?

sexta-feira, 28 de março de 2014

Caiu no chão como um saco murcho. Cai-se bem na ficção: lânguido lúgubre belo esmaecer. Na vida, no metrô, no asfalto não é bonito de se ver.
Carne que esqueceu-se ser ainda viva assentando mosquito – bicho oportunista.
Quebrou como vaso de cerâmica desfazendo o conteúdo de esterco onde deixou-se de plantar qualquer coisa.
Partiu-se como moranga madura querendo explodir no sol da roça (do avesso as sementes ganham o mundo lá fora).
Não se inquieta qualquer lambada de peixe no córrego, qualquer espernear da cigarra, as esquizofrênicas guinadas no trotar, o pescoço que parece ventar a pouco custo. Nada segura o pneu ladeira abaixo, nem a nódoa reluzente que traz pro homem simples um conceito de cristal insistindo pelas frestas da casca. Nada segura o que, por relance, por insistência, por frívola incidência, toque repetitivo da unha, como o incansável monjolo, quiseram, fizeram, forjaram. Abrupta corrente, tempestade de não dar tempo de tirar roupa do arame, bolha de melado quente, os perigos todos que se rompem como uma tramela, mostrando um outro mundo, o mundo de luz seca de cegar os olhos, o mundo do silêncio (enterraram o bebê numa caixa de sapato, os olhos pareciam olhos de boneca, olhando pra lugar nenhum), o mundo de ausência.

Durmo no chão junto. Ligo a lamparina, porque não durmo. 

quinta-feira, 27 de março de 2014

Costuraram a seco. A agulha mergulhava em pele seca como areia para encontrar ar do outro lado e repetir o movimento. Infinitas vezes. Nem sangue coloria porque a nada era devido transbordar. Foi instituído que se contivesse qualquer líquido, qualquer lágrima.
Sobra nem ar dentro do peito, parece tudo uma poeira cansada que não se revolve. Nenhum redemoinho, vento, sopro. Tudo é velho e não háligaçãoexternadenadacomnada. Dentro é um oco, como a bexiga de um carneiro sangrado ressecando no varal.

Fio que parece a estrada ou o trilho do metrô. Lugar de levar a lugar nenhum. Nenhum cânion, nem falésia, nem poesia em pedras ou coqueiros. Fim-de-semana é palavra amarela que subsiste em outros lugares, outros ouvidos, outros olhares. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014


E São Paulo urra lá fora.
Ou chora. Eu não sei.
Às vezes, alguém transvestido de pássaro tenta fazer algo. Mas as coisas se perdem em detalhes. O que é suave se perde por falta de distração.
Uma buzina, uma seta, e as coisas de nowhere acabam virando coisas. Um rubor, um desaconselho. Pensa-se pensar em coisas. Mas as coisas é que pensam. Tomam forma, incidem como um tambor, tintilam e parece-se nunca sair do carro, parece não ter fim o caminho, assim como não tem fim as músicas que se repetem no radio.
Tudo é um preço que se paga. Finge-se ignorar, pensa-se ser imune às atrocidades do que é visível. Nada dá lugar à música de fundo, à palavra que faz prequiça de lembrar. É muito transeunte. São muitos ombros que levam quase-ideias como enxurrada. O fugaz que se esvaia bueiro abaixo, o sublime que se corrompa!! E o amor. Esse que fique pra depois.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014


Ele pirou.
Ele pirou. (diria um narrador de maneira eloquente)
Uma escolha errada na vida. Um sufocamento pelo orgulho e outro orgulho de não poder voltar atrás. Coisa de homem. Coisa de honra. Honra é coisa de  homem.
Não podia ser dele, não podia.
Com a Eulália, foi só uma vez. Uma meia vez, porque ela era virgem. Dizia que era.
Depois, a estória de que o Fúlvio tava pegando ela também. Aliás, no mesmo dia que eu. Assim disseram. Uma vagabunda, só poderia pensar. Justo ela, tão virgem, tão branquinha, tão bicho-pra-ir-curtindo-na-pouca-rédea-de-moça-que-era-pra-casar. Tão linda. Usava um anelzinho no dedo médio – presente de quinze anos. As tardes de domingo eu passava com ela. Sorvete. Passeio na praça – ela fazia pequenos buquês com os pendúnculos das flores. Eu amava ela. Na verdade, eu amava. Dizia que ia casar.
As sextas eram pra gastar com as primas. A Eulália era pra casar. Eu pensava que tinha que preservar. Coisa de homem.
E aí, a notícia. Ela grávida. Ela veio me contar na saída do trabalho, ainda com a roupa da escola. Ela esperou tudo de mim. Ela acho que eu ia acreditar, apoiar, adiantar o plano do casório, sei lá. Ela nem parecia tão triste ou tão desesperada. Eu, atônito, encostado no muro de chapisco. Ela falou, falou. Espalmava as mãos. Cabelo preso pra trás. Eu falei qualquer coisa pra dentro, quase “licença”, peguei a moto, dei partida e fui embora. Fui embora mesmo, não pra casa, pra república onde morava, nem pra casa de ninguém, fui embora. Até a próxima cidade e a próxima e a próxima. Passei a trabalhar numa mecânica, depois numa mercearia, depois num açougue.
A menina nasceu com um probleminha, fiquei sabendo. Não podia mesmo ser minha. Da Eulália, pouco fiquei sabendo. Foi mandada embora da casa dos pais, foi parar na casa de uma tia no norte do Estado, foi trabalhar de doméstica, foi merendeira. Ela queria fazer contabilidade. Queria trabalhar no banco. Achava chique ser bancária.
Não tinha essas coisas de DNA. Não tinha.
Hoje, a prova da compatibilidade cromossômica não paga o tempo perdido, não apaga a culpa. Mais de 20 anos se passaram. Uma estrada que se ilumina apenas pra trás, assim é a experiência, como dizem.
A menina precisa de cuidados. A Eulália já se foi. Os avós, ainda que tão frios, não estão mais por aqui. A tia, já era velha naquela época.
A única coisa que me salva é a inocência que seu intelecto infantil deixou intacta. Minha eterna criança.
E, hoje, somos só eu, ela, a estrada e o tempo que ainda nos resta.
Eu desisto
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
E uma gente que não viva só pra si

Em algum lugar escondido por pedras que não indicam um caminho é 1988. Usa-se uma camisa polo lilás que alguém esqueceu em casa e ela passou a fazer parte dum acervo comumente povoado de camisetas de campanha política ou campanha salarial ou qualquer luta. De punhos rentes, fazia com que os braços tivessem bíceps fortes. Eu gostava de me perder de admirar.
Ao que se discutia alto, porque se discutia tanto e ao mesmo tempo na mesa de lata enferrujada, ainda que cervejas geladas em copos Nair untassem a fala, pigarreava-se, um pouco do frio, um pouco do tanto dizer, o que poderia ser rebatido com um caldo de mocotó em outro lugar, onde alguém recomendasse que se desse a saideira.
Cruzavam-se os braços com o dedão debaixo das axilas, o que, de novo, colocava a camisa e o apresentar-se dentro dela como uma coisa bonita de se ver, tão apropriado parecia.

Eu, secretamente, aguardava o dia em que, novamente, após o talco Banho a Banho, a cabeça descabelada se enfiasse por dentro da gola da camisa polo lilás e o herói se compusesse, abotoando-lhe até o pescoço, em pomo rente, pelas aparências que ela fazia emergir e justificava.