terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os dedos, o cabelo, a jaqueta – tudo embebe a lembrança do almoço de antes. Um kebab delicioso, embora lhe faltasse, pelas minhas restrições enzimáticas, um tal iogurte turco, pra lhe melhorar ainda mais o paladar. Tudo para ser comido em grande estilo sentada num banco de concreto em frente ao também amarelo anexo do museu Lehnbachhaus, não fosse a disputa incessante com um impertinente pombo às voltas do meu momento. O colega latino ao lado, se arriscando na lição de alemão, finge qualquer espanto diante dos meus espasmos. Do outro lado, a criança branca investia medrosa as várias migalhas da casquinha de sorvete em direção ao famigerado pássaro, incrementando o episódio terrivelmente longo.

Vencida, ainda mastigando, catei a garrafa com o resto do suco de maçã e bati, decidida, em retirada. O passo duro, a cara empinada, talvez toda a postura passasse uma ideia de pessoa bem localizada na capital da Baviera, de modo que uma senhora, a despeito do meu status de turista, se aproximasse e me pedisse orientação. Era seu o meu objetivo, visitar a Pinakothek der Moderne, mas sua localização exata eu secretamente ignorava. Ainda sim, dei qualquer apontamento e rompemos, cada uma em seu próprio zigue-zague, marcando uma distância segura, em direção ao museu onde, minutos depois, ela, descendo a escada para o guarda-volumes, e eu, ascendendo para encontrar o All Star amarelo de Andy Warhol, nos sorrimos docemente.
Cruzeiro é uma cidade muito mais interiorana e menor do que eu havia imaginado. Muito mais. Menos. Ruas entrecortadas em desenhos geométricos improváveis para a expectativa estrangeira. Ruas de pedras pontiagudas. Quebra-molas. Rupturas. Pequena o suficiente para que o diálogo aconteça entre duas bicicletas no meio da rua a despeito dos carros.
Uma cidade fora do tempo e do espaço, escondida por entre montanhas, incrustada, encravada, protegida por braços de um imenso gigante de todos os lados, construída para o meu devaneio-ficção.
Grita-se ou o silêncio registra ainda o romper da copa do dente de leão.
O chá cura melancolia e as dores de barriga. Nos quintais, cimento e a tinta das amoras, registro de outrora.
Em uma rua, seguem-se casas em corrente, um muro em comunhão, uma barricada contra a sorte, a solidão.
De manhã, são quase sete horas, as pessoas enfileiradas ignoram o orvalho e o cheiro do café coado que também sua os azulejos.
Na cidade envolta pelos braços de pedra, todos querem voltar pros braços de uma avó que cuidou de vinte netos.

Ninguém sai de Cruzeiro. Cruzeiro não sai de ninguém.