segunda-feira, 16 de abril de 2012


As pessoas são feias, há pessoas feias. O homem estrábico me olha, mas na verdade não sei se olha pra mim. A feiura se mostra pra lembrar o grotesco da vida. Só a criança me olha com propriedade. Me olha através como as crianças e os cachorros o fazem.
Numa terça-feira difícil ele chegou na minha vida. Uma terça ensolarada de dificuldades, imagens e situações se esfregando na minha cara do outro lado da rua. A tarde se acalmou pros rumos do fim, das árvores e matos e de uma casa onde parecia haver paz. Cachorros de todos os tamanhos vivendo em liberdade vieram me receber no portão, a mae, visivelmente a mãe, cheia em peitos, foi quem se posicionou em relação àquela visita, talvez já bem desconfiante com outras anteriores.
Ele me escolheu, veio se recolher sob meus pés e pernas, mastigou minha calça de dentinhos fininhos. E ele já era meu, se fez comigo como uma extensão de mim, da minha personalidade, da minha estória, querência. Mas ele já se imprimia por si também. E como me escolheu, escolheu seu próprio nome por detrás da porta do box do banheiro. Tinha personalidade, vontade, escolhas, mas era tenro, carinhoso, suave, alegre, feliz na sua existência, a cabecinha se curvava pra mim em delicadezas pra eu colocar nele a coleirinha, a roupinha de ginástica que ele tanto gostava, ou quando se despedia de manhã de mim antes da ida pro trabalho. E era charmoso, sabia fazer manha, e beijar no ar de linguinha pra fora da boca a cada vez que eu falava algo, principalmente como disfarce de alguma traquinagem.
Dançava comigo, adorava dançar e também cantava as letras que eu inventava pra ele e ficava me esperando acordar o que significava ouvir o estralar dos dedos e costas e vinha na beirada da cama, respeitando a regra do não subir, mas se abanava todo, intenso, feliz. Eu o pegava no colo, íamos até a janela e olhávamos a rua antes de começar o dia. Ele se enrugava no pescoço como ele gostava de fazer quando sabia que estava recebendo carinho. Tínhamos nossa companhia, nossa presença, nosso sigilo, cumplicidade, o silêncio da presença, nossos momentos de aconchego e acalanto.
Queria ter brigado menos por tanta interação com os meus sapatos, meias, chinelas, sutiãs, CDs, livros, óculos, deixado mais você subir no sofá, ou ficar atrás de mim na cadeira enquanto eu estudava, queria ter zangado menos com você, queria ter visto mais você tomando seu solzinho, queria ter arrumado um jeito de a gente ter andado de bicicleta juntos, de você ter ido ao Rio e a Florianópolis, de você ter comido mais abacate, e dormido nas minhas pernas. Queria só que você fosse mais, pudesse estender pra dentro da vida junto comigo, como éramos, como uma dupla que éramos, ver as coisas acontecerem do lado de dentro e de fora…
Outros cachorros passeiam na rua, poodles horrorosos, andam por aí como se nada tivesse acontecido, o cachorro do vizinho estressado como um europeu continua latindo corredor afora, como se tudo continuasse imóvel, sem a importância de uma alminha leve, um soprinho pequenininho e fraquinho o suficiente para encher uma bolha de sabão, um passar de algo tão leve quanto seus ossinhos no final, seu andar flutuante, e os pulinhos sôfregos pela escada me procurando pela casa grande, a tarde parece não aceitar que esse vaporzinho tenha dado o último suspiro, um anjinho de asinhas em pluma, árvores ventando, micos em outra categoria de bicho se exibindo pelos galhos, pessoas, sol, nuvem, tudo ignorando que um ser se vai e se esvai, um corpinho pra se encaixar no meu peito, repousar como uma fitinha ao vento.
E, de repente, nada faz sentido, nem ficar em pé, pensar em Paris, em desejo, em carnaval, música, poesia, projetos, compromissos, São Paulo, devaneios, planos, cores numa parede. E o que ele habitava foi se retirando, saindo de fasto, aos poucos, pra que eu não percebesse, lavaram o tapete, o sofá. Seus rastrinhos apagados como vestígios. Mas sua presença está ali, lá, acolá, está comigo, onde eu estiver. Nino pode viver agora e unicamente em um só lugar, mas este é aqui e será sempre no meu coração.


2 comentários:

  1. Palavras ternas, sentimentos desnudos....
    Entrei no seu cotidiano.....momentos de vigília, de ternura, de companheirismo e traquinagens!
    Um amiguinho de quatro patas nos demonstra o verdadeiro amor: sem cobranças, sem criticas, sem egoísmo.. Amor fiel e desmedido, amor sem limites. Assim, o seu Nino!
    Eu o conheci, sabia? Conheci aquele focinho molhado, aquele olhar meigo e cheio de amor! Aquele amor incondicional, que seguia meus gestos, sabia o que eu estava pensando, aquele olhar entendido de quando eu zangava com ele ou de quando eu o elogiava! Sabia a hora da festa, a hora do recolhimento em seu cantinho!
    Ah, Nino, você nos fez uma pessoa melhor, com certeza! E sua ternura vai calar fundo em nosso coração!
    Esses Ninos , Maira, sao luzes em nossos caminhos!!
    Fique bem, amiguinha! Você nao está só!

    ResponderExcluir
  2. Nino foi uma luz no meu ultimo ano.
    Um neto .
    Eu o imaginava todas as manhãs olhando pela janela.
    Sentinha seu cheirinho debaixo do chuveiro. Tomavamos banho juntos.
    Seu calor nas minhas pernas depois que a mamãe ia trabalhar. Na casa da vovó Rosa dormíamos no mesmo travesseiro, ainda sinto seu corpinho. Foi um ano inesquecível . Pode me esperar naquele jardim florido...

    ResponderExcluir